segunda-feira, 19 de outubro de 2009

Adios, Abuelito.


"É assim. Primeiro seu avô fica doente e todo mundo faz de tudo pra resolver a situação. Ele passa o Natal no hospital. Sai de lá no Ano Novo. Esperança. Mas nada se resolve e ele continua doente. Depois, ele tem um dia realmente ruim, com muita dor, fraqueza, desmaio, convulsões. Nesse dia vc chora no corredor do hospital porque acha que ele vai morrer ali, esperando atendimento e ninguém fazendo nada. Mas ele, mais que felizmente, não morre. Também não se cura. Num próximo dia, ele sente uma dor indescritível, daquela que remédio nenhum faz efeito. O médico dá um remédio muito, mas muito, forte. Você vê seu avô vomitando sangue e pensa que nada daquilo estaria acontecendo se vc tivesse estudado direito para o vestibular e já fosse médica. O médico, que estudou muito, chama os filhos e lhes diz que o câncer foi para os ossos e para o pulmão, que em dois, no máximo três, meses, ele já não estará mais ali. E que não há nada a fazer. Isso foi em março.

Então são dois meses em que não há limite para a dedicação. Todos se lembram do prazo e ninguém aceita o "nada a fazer". Ainda bem. Médicos, exames, consultas, remédios, brigas pelo melhor tratamento. Você vai lá quase todo final de semana, passa nervoso por não vê-lo melhorar. Dias ótimos de muita conversa e alguma risada, outros tristes de muito dormir e muito silêncio, dias de nada a fazer. Chega a Páscoa, a última grande festa. Dia de sol, cama no quintal. Passa a Páscoa, chega Corpus Christi. Os médicos estavam errados. Dúvidas.

Continua-se os médicos, os exames, os remédios. Novos sintomas, velhas doenças. Novas doenças, velhos sintomas. Corre-se, mas sem desespero. Quando e como saber se o melhor é o que fará o maior bem? Você sabe que as coisas estão erradas. Você não sabe o que nem como é o certo. Você se sente cansada. Já se foi metade do ano, o vô não melhora, não caminha reto para sair da cama. Vc se sente mal por não se sentir bem. Vc se culpa por não querer passar mais um final de semana lá. Vc começa a achar que está "perdendo" os finais de semana. Os temores nascem do cansaço e da solidão. Brigas, discussões, raiva. Não do seu avô, mas da vida. Vc começa a achar que a culpa é dele. Vc começa a achar que a culpa é sua. Vc começa a achar que todo mundo tem culpa. E ninguém tem, realmente, culpa.

Agosto, setembro. Ainda algum médico, muitos remédios. Exames atrasados. Agora uma enfermeira. De repente, uma melhora perceptível. Ele volta a te contar as velhas histórias. Você fica feliz e lembra o quanto gosta de ouvi-lo falar. Ele vai pro hospital. Trombose. Está doente mas está bem. Conversa até ficar rouco, troca experiências com o vizinho de quarto, faz exigências às enfermeiras. Acredita que muito em breve vai voltar a andar. Chora pro médico ao receber alta: queria sair de lá andando. Volta pra casa. Come favas, pede tremoço, ensina a neta do meio a torrar amendoim. Ela os queima, ele faz piada, descasca um a um pra ver qual se aproveita. Ensina de novo. Toma suco, pede a comida da vizinha que nunca cansa de mima-lo. Você se sente no auge do cansaço. Seu pai percebe. Tira férias pra ficar lá com ele e vc poder viver sua vida. Você se sente grata, marca mais médicos, cobra exames, controla remédios. Acredita que a situação está se estabilizando. Mais uma ou duas consultas e ele fará fisioterapia. Poderá andar de cadeira de rodas. Sonhos.

04 de outubro. Seu pai faz churrasco de pão. Faz mais de duas semanas que vc não vai lá. Passa no mercado compra tremoço e azeitona preta. A família está quase toda lá. Tem churrasco de sardinha, de salmão, de salsicha, de pão. Vc corre pra lá e pra cá. Quer ficar ao lado do seu pai, quer ficar junto do seu avô, quer brincar com o gato, com o cachorro e com a sua priminha. Euforia. Faz sol. Vc ouve uma ou duas das velhas histórias do seu avô. Leva azeitona pra ele. Tremoço. Cerveja preta. Sardinha. Tomate. Lazanha de beringela. Cai a tarde. Beijo de despedida no seu vozinho. Gratidão.

10 de outubro. Vc pensa em levar o vô na praia. Chove. Vc não sai de casa.

11 de outubro. Vc dorme o dia todo e então é tarde demais para ir à praia. Fazia sol. Mas é tarde demais.

12 de outubro. Chove. Vc pensa em passar lá para ver como ele está. Mas chove. A preguiça te vence. Consciência de que deveria ter passado lá pelo menos um dia. Vc se desculpa porque sabe que no outro final de semana é seu dia de ficar lá.

14 de outubro. Seu pai te manda um sms. Levando o vô no hospital. Vc lê cinco horas depois. Liga. Internação, pneumonia, saturação em 70. Pai confiante na melhora vai pra casa e te deixa confiante também. Depois do trabalho, vc vai ao hospital. Ele, com um monitor que apita e não mostra os números, olha pra você e balança os ombros. Não dá pra entender bem o que ele fala por causa da máscara. Ele pede uma foto. Vc não entende, mas tira e mostra. Ele vê e balança os ombros. A máquina faz barulho, não dá pra ouvir a TV, que vira outra máquina de barulho. Vc não segura a mão dele, não sei porquê. Vc coloca a mão sobre o ombro dele pra dizer que está ali. Ele pede pra tirar: o peso da sua mão repousando é muito pra ele. Vc coloca a mão no braço. Idem. Vc passa a noite lá. Ele diz para a enfermeira que o medica "essa é minha neta". Ele sente dor. Vc avisa. As enfermeiras dão remédio. A dor não passa. Vc passa a vigiar o sobe e desce do peito obssessivamente.

15 de outubro. A médica passa de manhã, com cara de pouca esperança e muita preocupação. Ele se comunica mal. Reclama de dor nas costas. Vc espera o café da manhã e reza pra alguém chegar logo. Vc quer sair dali correndo. Vc não quer sair dali. Vc quer que haja algo a ser feito. Nove horas. O café chegou. Ele pede queijo. Não tem. Toma meia xícara de café com leite, não come nada. Vc precisa ir e sai minutos antes da medicação. A despedida é rápida. Um aperto da mão no ombro porque vc não alcança a cama para beijá-lo. Deixa a promessa de que a filha dele chegará logo. Fora dali o nome da sensação é medo, vergonha e ignorância. Um medo aterrorizador de que ele morra sozinho só porque vc quer dormir um pouco antes de trabalhar. Vergonha por fazer tão pouco, por assistir alguém tão querido perdendo pouco a pouco tudo o que se é. O corpo, a comunicação, a dignidade. E a ignorância em essência. Não saber e pensar que sabe. Depois do trabalho vc vai ao cinema. Em parte pra não voltar pra casa, em parte porque isso deu certo da última vez. Agora vc sente raiva. De tudo, de todos. Antes de dormir vc pede a todos os deuses, todos os santos e a todos os mitos que seu avô pare de sentir dor, que tenha conforto e dignidade. Vc pede desculpas por não ser humilde o suficiente para pedir o melhor pra ele e assume a responsabiliade de pedir que ele descanse. Que não seja pra ele melhorar e continuar sofrendo aos poucos. Vc dorme enquanto reza e chora.

16 de outubro. O telefone toca. É seu tio. Medo. Você não atende. O telefone toca. É seu pai. Medo. Você tem que atender. A tecnologia faz sua parte. Estão todos se falando ao telefone. Todos os filhos e você, o mais velho dos netos. A médica disse que o remédio não está fazendo efeito. Ao badalar da meia noite fará 48 horas e, se nada mudar, terão que escolher entre o conforto do quarto e a vida a qualquer preço da UTI. Discussão. Todos falam ao mesmo tempo. Sua tia começa a descrever a noite de dor dele e desespero dela. Fica combinado que todos se encontrarão de noite no hospital. Telefone desligado. Vc pensa que deveria ir agora ao hospital. Mas não vai.

16 de outubro, 17h15. Vc vê que seu tio ligou. Vc retorna pra ele. A frase é "o vô parou".

A adrenalina sobe para o cérebro, mas a memória falha. Você foge, correndo, para a razão. Providências, coisas a fazer. É você quem vai dizer pra sua tia, pra sua irmã, pro seu irmão. Conta pra sua chefe. Termina de fazer coisas as coisas do trabalho, adrenalina que não pára. Sai de lá correndo, atravessa a passarela correndo, entra no primeiro ônibus que passa. Precisa avisar seus amigos "meu avô está a cruzar o grande rio". Não consegue parar de pensar nas moedas. Quer que ninguém saiba. Quer que todos saibam. Chora quando desce do ônibus. Seca as lágrimas na esquina do hospital. Sorri ao abraçar seu tio. Substâncias químicas desconhecidas te fazem racional, calma, prática, quase cruel. Você ouve como tudo se passou pela primeira vez. Ouvirá ainda mais duas vezes. Maneja o celular com a destreza de um espadachim. De repente, você está numa sala ao lado do seu tio. Ele não consegue parar de olhar os caixões. Você não quer vê-los. Escolhe-se hora e local. Escolhe-se o caixão, encomenda-se as flores. Caminha-se de volta ao hospital. Agora é sua tia quem chega. A adrenalina dela age na fala, o maior legado da família, além da teimosia. Pouco tempo depois, seu pai chega. Você perscruta o rosto dele procurando dor. Graças a deus, não encontra. Você não vai precisar abraçá-lo, não vai afogar toda a racionalidade que te salva.

A noite corre. Lugares a ir, coisas a fazer, pessoas a encarar. Você vê seu avô no necrotério, terminando de ser vestido. Sem caixão, sem velas, sem flores. E é só o corpo. Ele mesmo não está lá, mas é como se estivesse e como há muito tempo não estava. Ali, sem a expressão de dor, usando calça e camisa, sem a perna dobrada, sem cheiro nenhum, parecia que o corpo dele era dele novamente e que, assim sim, poderia abandoná-lo."



Eu nunca tinha visto um corpo sendo colocado no caixão. Nós, sem nós mesmo, somos mais moles que um boneco. Mesmo com cuidado, o corpo cai dentro do caixão, e o barulho é o de um boneco de pano muito pesado. A pele é amarela. As mãos também. Sem a respiração, é impossível pensar que há ali mais que um corpo. O pouco de espiritismo que sobrou em mim, me fazia sentir que ele estava ali perto, ao lado dele mesmo. Minha tia falava com ele como se ele estivesse vivo "está tudo bem, pai, agora você não vai mais sentir dor". "Eu vou junto com você.", disse ela. "Não toda a viagem", disse eu. Eu queria pegar a mão dele, mas eu não podia pegar aquela mão, porque aquela estava morta e não era dele.

No caixão colocaram cravos brancos e rosas vermelhas. Ficou bonito. Minha tia pôs no bolso do paletó uma foto antiga, de quando ela era muito pequena e estavam todos juntos no sítio do interior. Até o cavalo. Meu pai trouxe imagens de jesus e de nossa senhora. Escolhi o Jesus mais feliz e o Santa menos triste. A santa ficou nas mãos, o Jesus, no peito. Rezamos porque é a única coisa que ainda se pode fazer. Senti falta de ter fé, porque diferente de quase todo mundo ali, eu não sabia o que ia acontecer com ele agora. Não sabia nem se "ele" ainda existia de alguma forma. Amigos e conhecidos chegaram em profusão. Eu não sabia, mas isso é importante. Distrai a nossa dor, alimenta lembranças alegres, nos deixa livres para cair por sabemos que haverá quem ajude a levantar. Minha irmão fez a última preleção antes de fechar o caixão. Depois foi feito o Pai Nosso, o Ave Maria e uma pequena prece que ele mesmo nos ensinou e eu, confesso, não sabia que lembrava: "Con dios me deito, con Dios me llevanto. Con a Virge Maria y el Espírito Santo. En esa cama hay cuatro angeles, un en cada canto, que dicem, vá, descansa no temas ninguna cosa."

No cemitério, chovia muito. O buraco era fundo. No fim, de uma forma que eu não sei explicar, eu nos vi de costas. A cova aberta, o coveiro dentro colocando o caixão do meu avô e mostrando a caixinha com os ossos da minha avó que fôra exumada no mesmo dia porque não tinha vaga no túmulo. Ao lado, todos juntos, um segurando o outro por medo de que escorregasse, eu, meu pai, meu irmão, meu primo e minha tia a assistir a sepultura sendo fechada por placas com pinceladas de cimento e muita terra por cima. A última fotografia de que meu avô participaria.

Não ficou remorso, nem culpa. Eu os procurei incansavelmente dentro de mim, e não os tenho. A saudade que me abala é a saudade do passado, sem vontade nem desejo. A única coisa que me dói é o medo que sinto por ele. Um medo que só existe porque não tenho nenhuma fé religiosa e verdadeira que me console. Tenho medo que ele esteja sozinho sem entender o que as pessoas dizem e sem ninguém para traduzir. Tenho medo que ele esteja em algum lugar horrível pagando expurgando pecados ou coisa assim. Tenho medo que esteja sofrendo por teimar algo que não é, sei lá, real. E a única coisa que eu sinto agora, o tempo todo, é um enorme e profundo vazio.




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